Nas últimas semanas, o tema do casamento homoafetivo voltou ao noticiário e às redes sociais devido à tramitação na Câmara dos Deputados de um projeto de lei que propõe proibir pessoas do mesmo sexo de se casarem. O assunto parecia pacificado desde 2011, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as uniões entre pessoas do mesmo sexo se equiparam, no âmbito do direito civil, às uniões entre pessoas de sexos opostos. Até o embate na Comissão de Previdência, Assistência Social, Família, Infância e Adolescência da Câmara trazê-lo de volta à tona. A disputa é em torno do Projeto de Lei 580/2007. De autoria do falecido Clodovil Hernandes, ele propõe a inclusão da união homoafetiva no Código Civil. Ao longo dos anos, esse projeto de lei foi apensado a outras propostas sobre o tema, entre as quais apenas uma é contrária à união homoafetiva. Contudo, foi justamente esta única proposta contrária que o relator do PL 580/2007 recomendou aprovar. Trata-se do PL 5167/2009, de autoria do ex-deputado Capitão Assumção (PSB-ES). O relator do projeto na Comissão de Previdência foi o deputado Pastor Eurico (PL-PE). Em seu parecer, ele defendeu que nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento, à união estável e à entidade familiar. Para justificar tamanha discriminação, o parlamentar utilizou referências científicas já superadas e uma discussão bíblica sobre relações homossexuais. Na sessão do último dia 10, sua posição foi referendada pela maioria dos integrantes da comissão. Doze deputados seguiram o voto do relator. Cinco registraram votos contrários.
Na avaliação de Paulo Casella, professor da Faculdade de Direito (FD) da USP e coordenador do Centro de Estudos sobre a Proteção Internacional de Minorias (Gepim/Cepim), o texto aprovado pela comissão é inconstitucional, pois cria uma discriminação que não existe na Constituição Federal, ferindo o princípio de preservação da dignidade humana. Ele explica que o campo conservador tem acusado o Supremo Tribunal Federal (STF) de “ativismo judiciário” para colocar em xeque a união homoafetiva. “A discussão que está colocada no Congresso já tem por base uma inconstitucionalidade, porque estabeleceria uma discriminação e um prejuízo de reconhecimento de direitos que não está contemplado na Constituição. Então, não é questão de dizer que o Supremo avança além do que deveria. Eu acho que o Supremo está fazendo o seu trabalho de interpretar a Constituição e de traduzir uma interpretação que afeta a vida das pessoas”, diz Casella, que recentemente publicou um capítulo de livro sobre o assunto.
Nesta semana, o PL 580/2007 e seus projetos apensados avançaram para uma nova etapa de discussão, agora na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara. No âmbito desta segunda comissão, as deputadas Daiana Santos (PCdoB-RS) e Erika Hilton (PSOL-SP) já pediram a realização de uma audiência pública para debater o tema. Erika, que também integra a Comissão de Previdência, foi uma das cinco parlamentares que votaram contra o parecer de Pastor Eurico. Daiana tem afirmado em suas redes sociais que na Comissão de Direitos Humanos há votos suficientes para reverter a situação.
Relembrando a história da união homoafetiva no Brasil
Paulo Casella afirma que a decisão de 2011 sobre a união homoafetiva não pode ser considerada ativismo judiciário porque o STF meramente respondeu a uma consulta feita pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Na ocasião, o governo fluminense pediu um posicionamento sobre um caso bastante concreto: o cônjuge de um servidor público falecido estava pleiteando o reconhecimento do vínculo para ter o direito de receber pensão. O professor explica que a interpretação do STF equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis de casais heterossexuais.
“Foi preciso o Judiciário, isso algumas décadas antes, dizer que sim, (que) as uniões heteroafetivas de fato têm que ter reconhecidos os efeitos, porque as pessoas vivem juntas, constroem patrimônio juntas. A interpretação do Judiciário, antes das uniões homoafetivas, foi importante também para as heteroafetivas, contra as mesmas vozes tradicionalistas que diziam que casamento só é casamento quando tem papel passado”, diz o professor da FD.
Ao longo das discussões na Comissão de Previdência da Câmara, deputados da bancada evangélica por diversas vezes defenderam um ideal de família nuclear composto de homem e mulher, com o objetivo de gerar filhos. Segundo Marília Moschkovich, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, esse ideal exclui muitas experiências reais de famílias brasileiras. Apesar disso, está no centro da estratégia discursiva de grupos conservadores católicos e evangélicos. “A família é um não conceito teórico. É um discurso do senso comum. Por isso, é um discurso muito útil politicamente, né? Todo mundo tem família, todo mundo tem uma relação com uma ideia de família. É uma coisa presente nos valores das pessoas, seja de direita, de esquerda, LGBTs ou não. A família tem um papel moral na nossa sociedade que é muito importante e é muito forte para as pessoas. Até para o movimento LGBT, (que) reivindica o direito de poder fazer parte desse tipo de formação institucional”, diz Marília. A docente da FFLCH destaca que, no Brasil, a inclusão da pauta LGBTQIAPN+ nos direitos humanos se deu a partir do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), aprovado no final de 2009. Até então, as políticas públicas para a população LGBTQIAPN+ ficavam ligadas à saúde, muito vinculadas ao enfrentamento da epidemia de HIV. Com o PNDH-3, entraram de vez para a agenda pública questões como o casamento igualitário e a educação contra a homofobia. No entanto, a reação de grupos conservadores cristãos foi imediata – a polêmica do “kit gay”, por exemplo, começou nas eleições de 2010.
“A gente não tinha, antes do governo Dilma, essas políticas pensadas de modo global, para a sociedade toda, sobre questões LGBT. E quando começou, ela já foi atacada. Também o próprio governo na época cedeu nesse ponto, então não era um ponto tão inegociável assim. Isso só foi se aprofundando. Então, a gente tem um país em que as pessoas não têm educação com uma perspectiva de gênero, não têm uma educação pensada para direitos humanos bem resolvida e esses fatos fragilizam a democracia”, reflete a professora.
Fonte: Jornal da USP
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